Rio de Janeiro, 27 de abril de 2017.
Comunicado da CIPERJ aos associados e à sociedade
Os Hospitais Federais do Rio de Janeiro receberam uma ordem executiva de não incluir nenhum paciente em suas filas de cirurgia a partir de 3 de abril de 2017, sob pena de serem suspensos os repasses de verba às unidades. A justificativa para tal e a formulação de uma fila única, que será administrada por uma central de regulação, completamente independente das unidades hospitalares e seus funcionários. A ordem executiva recebida determina que os doentes encaminhados aos ambulatórios das diversas unidades devem ser examinados e diagnosticados e re-encaminhados à central de regulação com um laudo, SEM assimilação pela unidade encarregada do atendimento e diagnóstico.
A CIPERJ gostaria de se manifestar a respeito fazendo um diagnóstico específico: o inferno está cheio de boas intenções. Explicamos.
- Uma razão simples de logística: os pacientes, em sua maioria, têm um tempo de espera longo enquanto aguardam a referência e consulta em uma unidade terciária. Não há outro caminho permitido para o acesso aos hospitais, exceto situações de internação em regime de urgência. Chega a ser cruel que sejam, depois de um diagnóstico de doença cirúrgica, que costuma ser assustador para uma pessoa comum, ser reenviados para um novo destino, sem um vinculo definido, para aguardar novamente por um tempo (novamente indefinido) até o atendimento. Os pacientes não vão gostar. Mas eles não sabem disso ainda. Aliás, os pacientes não concordam com o sistema de regulação como funciona atualmente, que julgam pior do que a forma anterior de funcionamento das instituições ligadas ao SUS. Basta perguntar a eles. São adultos e cidadãos. Mas não foram consultados. Os gestores, supostamente, sabem o que e melhor para eles. O SUS que devia ser para as pessoas não é das pessoas. Muito menos dos médicos e trabalhadores da saúde que fazem efetivamente o trabalho de assistência. A opinião destes também não é solicitada.
- Mais logística: hospitais diferentes têm especificidades de atendimento diferentes. Cirurgiões com expertise diferenciada. Apoio clínico com características diferentes. Capacidade de atendimento de alta complexidade diferente. Os pacientes também. Pernas quebradas e hérnias se localizam em pessoas vivas. Alguns são jovens saudáveis, outros são idosos com comorbidades agressivas. Alguns são pessoas em boas condições sociais. Outros vivem em nichos de miséria e violência, sem condição mínima de conviver com cuidados pós-operatórios em suas casas. Uma folha de papel com um diagnóstico não traduz uma situação clínica integralmente. Um título de especialista traduz um painel mínimo necessário de expertise num campo de atuação, mas não traduz subespecializaçoes ou treinamento em segmentos específicos, especialmente envolvendo doenças raras e cirurgias de alto risco e complexidade.
- Uma razão ética e imperativa: médicos não são prestadores de serviço, são médicos. Cirurgiões não são executores de procedimento, são médicos. O compromisso é muito maior do que executar uma manobra técnica. Para uma cirurgia é necessário mais do que um diagnóstico e ter a habilidade específica. É fundamental uma relação de confiança e responsabilidade entre médico e paciente. É necessário, dentro da ética moderna, um consentimento informado que contém um elemento de confiança mútua e intimidade. E diferente de ser um portador de um defeito a ser consertado por um técnico. E ser um paciente e um médico. Definitivamente receber pessoas a serem tratadas mediante um encaminhamento administrativo definido por uma fila de ordem de chegada não é praticar cirurgia como deve ser feito. Também não é respeitar o cidadão que esta doente em sua individualidade de pessoa. Definitivamente isso não é conhecer o que um médico faz. Sim, temos poucas chances de atendimento frente as necessidades da população, infelizmente. Sim, temos que administrar a escassez com critérios de justiça. Mas não são estes os critérios de justiça. Determinar quem chegou primeiro não basta. Determinar quem mora mais perto não basta.
- Uma razão moral: cirurgia assusta. Pessoas que têm os meios para tal buscam cirurgiões indicados e confiáveis de seu próprio ponto de vista, muitas vezes solicitam várias opiniões antes de se definir por um profissional. Pessoas que não tem dinheiro também deviam ter este direito. Atender pessoas não é consertar relógios. Pessoas que vão ser operadas ou ter seus filhos operados precisam conhecer e confiar nos cirurgiões com que vão se relacionar durante o tratamento. É um direito. E a concepção mínima de medicina humanizada. É o reconhecimento de que relação médico-paciente é fundamental.
Precisamos repensar as idéias. Precisamos ver as grandes questões que nos afligem sem minimalismo intelectual e sem mecanicismo de gestão. Gerir saúde, para o bem e para o mal, não é administrar prestação de serviços ou confecção de máquinas. Gerir saúde (e, mais adiante, gerar saúde) é muito mais. É mais difícil, tem mais variáveis, é mais complexo. Não pode ser reducionista.
DIRETORIA DA CIPERJ